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A importância daquilo a que não damos importância

Quando o próximo anime estourar, quando um novo personagem japonês estiver em todas as camisetas, games, lancheiras e sandálias, vamos ficar nos perguntando como foi que isso aconteceu


26 de abril de 2019 - 9h57

Há uns dias, a Business Insider publicou uma análise sobre a trincheira que a Netflix construiu para se defender do recém-anunciado streaming da Disney. A plataforma contratou um grande volume de animes japoneses. Faz todo sentido. Desde Osamu Tezuka (Astro Boy, A princesa e o cavaleiro), os japoneses têm emplacado hits avassaladores na cultura pop. Geração após geração, vimos surgir personagens como Ultraman, Changeman, Pokémon, Cavaleiros do Zodíaco, Naruto… A lista é imensa.

Na quarta-feira, 24, a Toei Company fez um painel no Rio2C. A Toei é uma das maiores empresas de entretenimento do Japão. Entre seus sucessos, estão personagens lendários, como National Kid, Jaspion e Kaimen Raider. Não é pouca coisa.

No painel, estava Shinichiro Shirakura, o produtor executivo da Toei que criou os Super Sentai – aqueles grupos de cinco heróis coloridos que combatem monstros e, eventualmente, possuem um robô gigante. Aqui, os conhecemos como Changeman e Flashman. A versão americana dos Super Sentai se chama Power Rangers, uma série que fez sucesso em inúmeros países.

A surpresa da sessão foi a divulgação do nome de Rodrigo Bernardo como diretor da versão nacional do herói Jaspion, que a Toei licenciou. O filme será um longa-metragem e, pelo que Bernardo contou, quer pegar carona no sucesso dos longas de personagens da Marvel e da DC.

Jaspion terá versão brasileira dirigida por Rodrigo Bernardo (crédito: reprodução)

Fui assistir ao painel, claro. Se a Netflix está de olho nesse mundo, me parece óbvio que todos nós deveríamos estar. Se os rigorosos licenciadores japoneses aceitaram fazer essa versão brasileira de Jaspion, deve ter um coelho nessa cartola. Apesar de tudo isso, apenas a plateia baixa do teatro, que deve representar um quarto do espaço total, estava ocupada.

Eu entendo, claro.

Não faço parte de nenhum fandom de heróis japoneses. Como quase todo mundo, também acho essas séries toscas, porque elas não são feitas para mim. Quando era moleque, gostava de Changeman e Jaspion. Hoje, acho graça no sambão que toca na versão coreana de Super Sentai. Mas isso não quer dizer que eu não me interesse pelo potencial que o projeto Jaspion pode vir a ter.

A gente não dá importância para muita coisa porque elas parecem não ser interessantes pra gente. E é assim que perdemos oportunidades. É assim que, quando o próximo anime estourar, quando um novo personagem japonês estiver em todas as camisetas, games, lancheiras e sandálias, vamos ficar nos perguntando como foi que isso aconteceu. É simples: a gente não prestou atenção porque achou que não era importante.

O Rio2C começou no dia 23 de abril. É um dia auspicioso para um evento de conteúdo: Dia do Livro, dia das mortes de Shakespeare e Cervantes e Dia de São Jorge. Vamos deixar Hamlet e Dom Quixote de lado por hoje, e focar no santo: São Jorge é uma espécie de Jaspion medieval, um herói que enfrenta monstros terríveis usando seus poderes sobrenaturais.

Basta olhar para a rua para ver que o povo brasileiro é devoto de São Jorge. O santo nem é mais considerado santo pela Igreja Católica. Saiu do cânone e ficou limitado a ser uma lenda popular. Mas é comum ter um vasinho de espada de São Jorge na porta de casas e lojas do Brasil todo. Pode reparar. São Jorge é o santo que não é santo, e também é Ogum ou Oxossi – o sincretismo se deu de forma diferente nas regiões do Brasil. Poucos santos têm uma data tão conhecida e tão lembrada, ainda mais não sendo santo.

Mesmo assim, a gente não fala sobre conteúdo religioso. Se alguém achar um painel específico sobre o tema no Rio2C, por favor, me avise. Claro, a gente está no Brasil, e não tem como pelo menos não tangenciar o tema. A religião, aqui, se impõe. Na Barra, onde está a Cidade das Artes, não temos a onipresença do Cristo Redentor. Ou temos? A maquete do Rio de Janeiro feita com Lego que está por lá tem um Cristo de Lego. O rapper que participou da mesa sobre a narrativa do hip hop se chama Baco Exu do Blues. O publicitário e escritor PJ Pereira tem uma série de livros sobre orixás. Mas, ainda assim, não se debate sobre conteúdo religioso.

De novo, eu entendo as razões. É como Jaspion. A gente tem motivos dos mais variados para manter os dois pés atrás. Os resultados de quem tentou fazer algo nem sempre foi dos mais animadores. Talvez o assunto não seja cool. Talvez a abundância de conteúdo de baixa qualidade espante bons criadores. De repente, é espinhoso mesmo, sei lá. Tenho certeza de que todo mundo consegue dar uma boa explicação. Mas é preciso deixar claro que a escolha de não se meter com o tema tem como consequência ignorar todas essas espadas de São Jorge que se espalham pelas calçadas do País. Não é pouca coisa.

A religião já criou conteúdos de primeira no Brasil, de Aleijadinho a Jorge Amado. Outro dia, chegou a mim a HQ Contos de Orixás, em que o artista Hugo Canuto recriou as divindades afro-brasileiras como se fossem super-heróis de Jack Kirby, o grande artista por trás da Marvel. Por tudo isso, arrisco dizer que não tem que como não haver espaço para criar uma infinidade de conteúdos relevantes com a religiosidade do brasileiro.

Eu acredito muito no Brasil e na criação nacional. Eu sei que os criadores que estão no Rio2C também acreditam, porque vi a reação ao chamamento feito por Louis Black, cocriador do SXSW, que fez uma profissão de fé na criatividade do brasileiro. Eu acredito no Jaspion de Rodrigo Bernardo, eu acredito na potência dos conteúdos que podem ser criados a partir da espiritualidade nacional.

A gente tenta fazer tudo igual sempre. A gente foge das coisas novas. A gente se apega ao que já conhece. Mas será que precisamos ver mais palestras sobre assuntos que já estamos cansados de debater? Será que a renovação do mercado não passa por nós mesmos nos renovarmos?

Me perdoem pelo clichê, mas talvez seja hora de insistir: em um mundo que está em plena transformação, é fundamental sair da zona de conforto e experimentar coisas novas. Pode ser São Jorge, Jaspion ou qualquer coisa. O risco de sempre querer aprender mais do mesmo é ficar fazendo a mesma coisa para sempre.

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