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Sim, precisamos falar sobre fake news

O que nos resta é o paradoxo: há mais verdade na boa ficção do que em todas as fake news do mundo


25 de abril de 2019 - 7h38

Tenho pensado muito em fake news desde que cheguei ao Rio2C. Não vi ninguém mencionar diretamente o assunto. Não vi nenhum painel sobre o tema na programação. Até entendo a vibe de criadores festivos que esses eventos têm, mas não me obriguem a concordar com ela.

Fake news são o grande tema do conteúdo neste ano.

Vou enfatizar: O. Grande. Tema.

A democracia no mundo todo está ameaçada por narrativas ficcionais de alto impacto que transformam a nossa percepção de realidade. Não sei vocês, mas confesso que eu, um jornalista com alguma experiência, razoavelmente bem informado, repassei duas ou três fake news no Twitter no ano passado. Lembro que elas vieram de fontes que considerava serem confiáveis e de ter apagado logo em seguida, mas vai saber o efeito borboleta que isso pode ter causado…

Fake news são conteúdos criativos. São muito bem engendrados, da criação à viralização. Elas não brotam do chão. São feitas por equipes. Têm produtor, diretor de arte, redator, mídia…

Defendo que o Rio2C deveria discutir as fake news porque são as pessoas que estão aqui que poderiam pensar em estratégias para combatê-las. Os produtores de fake news são espertos, mas não são tão bons assim. Basta ver um post desses com atenção: costumam ser profundamente inverossímeis. Esses caras até podem ser bons para fazer esse trabalho sujo, mas são limitados: eles claramente não têm a capacidade de criar um Black Mirror, uma Sob Pressão, um Game of Thrones.

Sinto em conversas e painéis do Rio2C que o mercado de conteúdo está ressentido. As fake news convenceram parte da população brasileira que os artistas e produtores são vagabundos e que vivem de sugar dinheiro supostamente público. Esses caras foram de ídolos a vilões em meia dúzia de mensagens de WhatsApp. E, agora, com o respaldo dessa fatia do povo, o mercado está prestes a perder mecanismos importantes de subsistência, como a Lei Rouanet, o Sistema S, a Ancine. Ouvi as queixas nos painéis, mas esses produtores e criadores que reclamam talvez não percebam que a solução também poderia vir deles. E é por isso que digo que fake news é um assunto que esse mercado deveria olhar com mais dedicação.

Foi com essa questão na cabeça que vi uma das falas mais bonitas do evento: a do roteirista Lucas Paraizo, na arena do Espaço Empresas Globo.

Lucas é roteirista da série Sob Pressão e de filmes como Aos Teus Olhos e Gabriel e a Montanha. O novo Domingo, que estreou em festivais e entra em cartaz nos cinemas este ano, é uma maravilha. Não é pouca coisa. No meu mundo ideal, esse cara falaria no palco principal, e haveria filas para vê-lo. Cheguei à arena com a expectativa lá em cima, e não me decepcionei.

Não vou repassar toda a palestra. Quero falar de pesquisa porque Lucas defendeu a pesquisa para criar roteiros. Mais que isso: argumentou que essas pesquisas precisam de rigor. Para ele, a pesquisa rigorosa amplia a visão e permite que faça mais apreciações e menos acusações.

“Eu pesquiso para que meu público não precise pesquisar por mim”, diz o roteirista.

Ou seja: ao pesquisar, os estereótipos caem por terra, a noção de certo e errado se desfaz, a polarização é diluída, surgem mais zonas cinzentas. O roteiro ganha contornos mais sinuosos, fica mais complexo, e as pessoas veem um programa melhor. Todo mundo sai ganhando com uma boa pesquisa.

Quem também defendeu a pesquisa no palco do Rio2C foi a diretora Vera Egito, que anunciou no evento uma nova série que está fazendo para a HBO, Todxs, porque a série trata de três amigos: um garoto, uma garota e uma pessoa não-binária.

Vera diz que fez muita pesquisa e que contou com uma sala de roteiristas jovem e diversa. Porque, lógico, coisas como diversidade e lugar de fala não são apenas atitudes que pegam bem hoje em dia, mas também ferramentas que ajudam a enriquecer um conteúdo. O roteiro fica mais autêntico, mais verdadeiro, deixando para trás qualquer possibilidade de se fazer uma caricatura no lugar de um personagem.

As pesquisas feitas por Lucas e Vera são antídotos. São totalmente anti-fake news. Elas são feitas para fazer ficção, mas buscam a verdade. Quando o espectador vê Sob Pressão, e possivelmente quando for ver Todxs, vai encontrar mais que verossimilhança. Na ficção, vai encontrar coerência, vai encontrar pontos de vista ricos, diferentes, que ajudam a pensar. Com sorte, vai perceber que o mundo tem mais cores que imagina e que os artistas não são bandidos, mas criaturas que nos proporcionam sentir coisas complexas e maravilhosas.

No fim das contas, o que nos resta é o paradoxo: há mais verdade na boa ficção do que em todas as fake news do mundo. E isso, se não resolve o problema, já é um começo. Agora nos resta descobrir como ir em frente.

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